9/18/2006

Deformidades, goonies, kikitos, lagartos, gorilas e um argentino


Uma família em férias, cujo motor home tem os quatro pneus furados no meio do deserto, fica à mercê de um bizarro grupo de humanos deformados, gerados a partir dos testes nucleares que o governo realizou na área.
Incrível que, partindo da mais esquemática das premissas, o remake de Quadrilha de Sádicos (The Hills Have Eyes, 1977; conseguiram cagar com um baita título original duas vezes) ergue fácil a taça de terrorzão nº 1 da temporada. Viagem Maldita é um feito. Não tem a vontade de ser inteligente daquele insosso cocozinho infantil chamado Jogos Mortais, nem a ausência de medo que comprometeu em parte O Albergue. É uma cacetada só, uma catarse cinematográfica comandada com um gás impressionante pelo ainda novato Alexandre Aja (do igualmente fiadaputa Alta Tensão, já comentado aqui). Desde que o vi, confesso que passei a reforçar melhor as portas e janelas lá de casa.
O trabalho da direção é mesmo o grande chamariz. Aja molda seus personagens com carinho, e cada bate-papo não é mero pretexto para levar alguém para a cama (ou sofá, ou mato, ou lago) como num Jason da vida. Todos eles discutem seus problemas, reclamam do pneu furado, falam de política, sofrem com calor, fome e sede, beijam a testa dos filhos, exatamente como nós do lado de cá. O negócio é punk porque, segundo a cartilha tradicional do gênero, sempre os primeiros a morrer são os chatos e egoístas. Aqui, não. Assim, quando eles finalmente sofrem o primeiro ataque (na seqüência mais insuportavelmente apavorante) o espectador sente na pele cada mutilação, cada grito de desespero, cada esguicho de sangue. E ainda botaram um nenê ali no meio daquelas barbaridades todas. Um nenê, cara... recém-nascido... putz.
E os cagaços, então? Vou ao cinema quase toda semana desde os meus 15, 16 anos e confesso que nunca, NUNCA tinha presenciado tanta gente pular da cadeira. Alguns sustinhos são mamata, outros nem tanto. Aja é daqueles que fazem de tudo pra que o espectador não queira ver o que está na tela - e ainda filma o terceiro ato durante o dia, num sol de rachar, ao melhor estilo Seven. A atmosfera árida, a edição e o posicionamento da câmera criam um cenário pós-apocalíptico, bem Mad Max mesmo. E o que era aquela trilha recheada de barulhinhos undergrounds de 1970 e picos?!
Claro que os remakes ruins vão superar os bons, sempre. Mas se de cada cem sair um massa como este, então o mundo tem remédio, sim senhor. Espero que Aja não vire tão cedo um fantoche de estúdio, como aconteceu com o Craven. Mas aí já terei em mãos o meu DVDzinho em edição especial, com seus dois minutos de sanguinolência censurada, para rever sempre que tiver vontade de... chamar o Hugo. Nota 8,5.

O nível de qualidade do Festival de Gramado, sempre se soube, não é dos melhores. Vez que outra aparece por lá um O Filho da Noiva, mas é muito raro que filmes realmente fora de série sejam selecionados. Anjos do Sol, um longa corretinho, saiu vencedor este ano. O relato é de um tema espinhoso: a exploração sexual de crianças em áreas distantes onde noções de lei ou cidadania não parecem existir. Tudo muito bem feitinho - o diretor Rudi Lagemann vem direto da publicidade, currículo-base de cineastas como Fernando Meirelles e Walter Salles. Um dos problemas que acabam minando algo da credibilidade desta sua estréia é o desenho dos vilões; por mais que Antonio Calloni, Otávio Augusto e Chico Diaz estejam ótimos em cena, seus personagens são muito espetaculosos e caricaturais pruma fita que almejava ser realista. Mas torço pra que faça uma boa graninha. P.S.: o Gordo é o cara mais mochileiro que eu conheço, por isso foi uma experiência muito diferente estar ao lado dele na sessão. Foi mais ou menos como estar acompanhado de um guia turístico. De vez em quando ele largava um "olha só, a Cidade Baixa de Salvador!" ou "bah, mas aquele índio não podia cortar a macaxeira daquele jeito". Nota 6,5.

O que esperar de algo chamado King Kong x Godzilla? Muita pancadaria entre os monstrengos, não? Pena que isso o filme tenha pouco. Cometido em 1962 pelo megafalcatrua estúdio japonês Toho, o longa traz uns bichos de borracha de fundo de quintal trocando socos, pontapés e rabadas em três breves seqüências. Os fãs de um bom e velho trash até vão topar com uns achados. A primeira aparição pública do lagartão, por exemplo, é antológica: ele sai de dentro de um iceberg a cabeçadas, e um japa num avião grita "Gojiraaaaaaa!", meio que batizando o bicho do nada. A de Kong não fica atrás. Após uma louca dança conjunta em que uma cambada de índios (tudo japonês pintado de preto e com panos embaixo dumas saias de palha, algo inacreditável) evoca os deuses da chuva, o gorilão chega CHEGANDO. Mal-feito pra dedéu, com uma fantasia pior que aquelas de carnaval. Ah, e para o diretor a Ilha da Caveira fica logo ali, em Tóquio. Como de praxe nesses B nipônicos, todas as maquetes são de papelão e isopor mal pintado, e os atores exibem uma canastrice que não dá pra perder. Pensando bem, mesmo com baixo nível de porrada a diversão é garantida. Nota 6.

Harrison Ford ainda tem fôlego para correr atrás de nazistas, cartéis de drogas, extraterrestres, terroristas e o escambau, mas um bom roteirista o cara não pega desde os tempos de O Fugitivo (1993). Firewall é mais um material de segunda linha estrelado por ele. Por mais que seja bacana a cena em que o Indiana mata um dos bandidos a golpes de liquidificador (!), é difícil levar a sério coisas como um vilão Bombril que é hacker, assassino frio e um mentiroso de primeira, tudo ao mesmo tempo agora. Falando nisso, os produtores não perdem a chance de faturar em cima do patrocínio - é Microsoft aqui, Nokia acolá... até um iPod salva a pele do mocinho! E os diálogos, então? "Onde você vai?"; "Achar meu cachorro!", e o Harrison arranca a mil, em busca da família seqüestrada. O pique é até legalzinho da metade pro final (quando Ford atravessa vidraças, escala prédios, quebra paredes de madeira e sai no braço com caras 30 anos mais jovens), mas aí a credibilidade já foi pro saco há horas. "Alô, Spielberg? É Harrison falando! Harrison FORD, tá lembrado...?". Nota 5,5.

Terra Fria é o enésimo mulher-forte-luta-contra-as-injustiças-do-mundo, na esteira que já nos deu Norma Rae e Erin Brockovich. Com direito a momento "eu sou Spartacus!" e tudo. Não rola, né? Nota 6.

Algo como a Primeira Temporada de Sex and the City diz muito mais sobre as mulheres que qualquer Terra Fria. Mesmo com toda a simplorice. Nota 7,5.

Nada muito o que falar sobre A Névoa, mais uma bola-fora desses maditos remakes hollywoodianos. Tudo bem darem uma nova roupagem a King Kong ou O Massacre da Serra Elétrica, obras que marcaram época. Mas quem se lembra de A Bruma Assassina? Olha só a idéia dos caras: comunidade costeira na Califórnia é completamente cercada por uma densa (e mortal) névoa. Veja bem, a ameaça não vem de tubarões, terremotos ou psicopatas de faca na mão, mas uma fumacinha mixuruca que não mete medo em ninguém! Ainda menos em nós, moradores rio-grandinos, que já tamos acostumados à maldita cerração outonal - isso sem falar nos gases poluentes emitidos pelas indústrias em dia de chuva... Aquilo lá, sim, é de arrepiar os pentelhos! Nota 3,5.

Os Goonies vem de uma época em que sequer se sonhava com DVDs, muito menos com extras recheados de entrevistas, making of e cenas excluídas. Uma época em que a Sessão da Tarde obrigava a gente a se atrasar para a aula de Educação Física. Em que uma frase tipo "come em cima dum prato!" não fazia muito sentido pra mim. Uma época em que o Spielberg resolveu ser Walt Disney, e ouvir Cindy Lauper era uma coisa muito legal pra se fazer. Já disse que sempre volto a ser criança com o Sloth? O disquinho do filme foi um presente do impagável Raphael, diretamente de Londres, que chiquê. Nota 9 (por muito, muito tempo foi DEZ).

Um híbrido curioso esse O Amigo Americano (1977). É thriller com andamento de filme de arte, comandado com tesão por um Wim Wenders jovial. Só que o legal mesmo é ver Dennis Hopper no ápice da loucura. Foi mais ou menos nessa época que ele foi encontrado peladão numa rua escura, à noite, falando um amontoado de frases desconexas. Drogadito, eu? Nota 8.

Esses hermanos... Esta semana pintou lá em casa o cult em potencial O Abraço Partido. A ação é ambientada em Buenos Aires, mas o pano de fundo podia ser qualquer cidade brasileira, européia ou asiática. Do alto de seus 20 e poucos anos, Ariel (Daniel Hendler, num tour-de-force merecedor de muitos prêmios e aplausos) trabalha com a mãe numa galeria comercial decadente, onde eles têm uma loja de lingerie. Os lojistas da galeria misturam italianos, coreanos e uruguaios, e são quase como uma grande família. O magrão sonha em conseguir um passaporte polonês, para morar na Europa e assim se aproximar do pai, que abandonou-os antes do seu nascimento para lutar em Israel. A globalização e a multicultura estão aí, e manifestações artísticas como esta servem pra mostrar que mesmo sendo todos iguais, precisamos descobrir um pouco mais sobre nossas origens, nossas raízes. Acima de tudo é um filme do povo, espirituoso, de se identificar com detalhezinhos aqui e ali (vai dizer que a tua avó não deixa a água fora da geladeira "por causa da garganta"?) e chorar de emoção por isso. Amores Brutos, Nove Rainhas, Plata Quemada, Whisky, Diários de Motocicleta, Campanella e agora este: é tanto filme fodão que volta e meia bate um orgulho danado de ter nascido por estas plagas. Nota 8.

No fone: Camera Obscura - "Let's Get Out of this Country"

9/11/2006

Picanha

Querido leitor, seguinte: saí na Zero Hora de sábado. Cortesia do sempre excelente Rodrigo Santos, que fez uma supermatéria sobre a situação dos cinemas aqui no interiorzão gaúcho.
...Autógrafos, a partir desta semana.

No fone: Iron and Wine - "Cinders and Smoke"

9/04/2006

Campanella & Brant mostrando serviço, um Cronenberg revisto, Steve Martin vice-versa...


Na crítica cinematográfica, costuma-se falar muito em obras baseadas em romances tidos como "infilmáveis". Naked Lunch, livrinho claramente escrito sob efeito de drogas pesadas pelo doidão William S. Burroughs e transformado em desconcertante obra-prima por David Cronenberg em 1991, merece esse jargão mais do que qualquer outro. Sabendo que a tarefa era impossível, e mandando uma grande banana para a indústria que mais mata artistas no mundo (thaaaaat's Hollywood), Cronenberg foi lá e fez Mistérios e Paixões. Fico imaginando as pessoas que alugam um filme pelo título dando de cara com gente viciada em veneno de barata, enrustimento homossexual e alucinações capazes de transmutar máquinas de escrever em insetos gigantescos, com esfíncteres falantes e repletos de secreções.
Tinha visto o filme uma vez só, em VHS, lá pelos meus 12, 13 anos. Boa parte dele permaneceu comigo, e essa sensação, espero que alguém aí já tenha tido, é boa demais. O ex-Robocop Peter Weller é impecável como Bill Lee, escritor frustrado que extermina baratinhas para pagar suas contas. Sua mulher Joan (Judy Davis, amarga que ela só) está viciada no barato que o pó lhe causa; Bill dá uns tecos na substância e entra num processo interminável de viagens. Chega uma hora em que, tão alucinados quanto ele, já não sabemos diferenciar a verdade e o delírio. Uma proeza beatnik, feita sob medida para o grande público odiar de verdade. Donos de mente aberta e estômago forte, façam sua parte e amem-no, amem-no com todas as forças. Nota 9.

Meu amigo Rodrigo resumiu bem Piratas do Caribe - O Baú da Morte na saída do Cine Figueiras: enquanto ação, é melhor(zinho) que o primeiro; já o roteiro parece ter sido escrito a quatro mãos por Renato Aragão e Ronaldo "Chespirito" Bolaños. Isso aí. Fora o enredo, o qual nem é bom lembrar, é dose suportar quase duas horas e meia de gente feia, suja e unilateral - tirando Orlando Bloom e Keira Knightley, todo mundo parece interpretar com uma colher de sopa de Nescau na boca. Tudo bem que dentistas eram raros na época, mas aquilo lá já é demais. Nota 6.

Eles tinham razão: Tomilidiones é mais diretor que ator. Três Enterros, seu début, revela um cineasta literalmente com as rédeas na mão e calejado na direção de atores. Muito além do que aquele rosto durango e cheirando a pêlo de cavalo mostra na telona. Vai pegar a câmera, homem! Nota 7,5.

Não percam os extras do DVD de Crime Delicado. Acompanhar de pertinho o sessentão Walter Carvalho, um dos maiores fotógrafos do cinema, explicando com minúcias o seu trabalho enquanto queima unzinho sentado à mesa de bar é algo que não tem preço. O filme, ainda mais imperdível, traz uma coleção de planos fixos per-fei-tos; numa seqüência em particular, toda desenrolada em cima do palco (aprende, Camurati), o Nachtergaele faz questão de reforçar quem é o melhor ator do Brasil. A dobradinha Beto Brant-Marco Ricca (de O Invasor) é para ficar de olho. Nota 8.

V de Vingança tem algumas boas idéias e impecáveis elenco e produção. Deve fazer bonito nas locadoras, mas de NOVO, de empolgante e inspirador como se pensava que fosse, traz pouco. Será que eu esperava um novo Matrix? Os colhões da fita são inegáveis, ainda mais nesses tempos de WTC: fala-se em bioterrorismo, escutas ilegais, campos de detenção... Assumidamente esquerdista, essa adaptação de Alan Moore é dirigida meio no susto pelo estreante James McTeigue, assistente de direção na trilogia de Neo; os Wachowski só assumiram o roteiro e a produção. Algumas ideologias impostas pelo roteiro são questionáveis (mostrar o terrorismo como única saída para fazer o bem, por exemplo), e certas seqüências pediam um pouco mais de intensidade, de sangue mesmo. O negócio é deixar o som no volume mais alto possível e se empanturrar com aquela pipoca do saquinho rosa. Nota 7,5.

Muito se falou na revolução que O Coronel e o Lobisomem provocaria nos efeitos digitais brazucas, que seria um divisor de águas e blablablá. Coisas da produtora Paula Lavigne. Qualquer Um Lobisomem Americano em Londres, feito num longínquo 1981, bate ele. O filme não é engraçado, romântico ou assustador. Diogo Vilela e sua barba Los Hermanos não incomodam tanto, mas Selton Mello e Ana Paula Arósio estragam a festa. Que vozinhas irritantes, e (agora me referindo só a ele) que desperdício de ator. Investir em efeitos não é mesmo coisa pra artista brazuca, mas de acertar o tom do elenco a gente entende, né? Quem não lembra do medão que dava quando pintava o professor Astromar em Roque Santeiro? Aproveitando a deixa, por que não incluíram na trilha aquela "mistérios da meia-noite, que voam longe..." no lugar de três ou quatro faixas do Caê, hein Paulinha?? Nota 5,5.

Quando o ator é realmente interessante, não dói tanto ter de agüentar filmezinho de doença da semana. Sem William H. Macy, talvez De Porta em Porta fosse mais um desses Supercines chororôs. Bom que o renegado astro de Magnólia e Boogie Nights faz questão de mostrar que papéis centrais são com ele mesmo. Nota 7,5.

Quem sente saudade da época de Antes Só do que Mal Acompanhado, Roxanne e Um Espírito Baixou em Mim não vai saná-la com A Garota da Vitrine. Pelo contrário, vai conhecer um Steve Martin sério e contido. Sua atuação não é digna do Oscar; já o roteiro, de sua autoria, pode ganhar alguns admiradores, em especial os fãzocas de Lost in Translation e Rushmore. Claire Danes e Jason Schwartzman me conquistaram de vez. Nota 7,5.
Mais óbvia, a nova A Pantera Cor de Rosa traz o Steve Martin que todos gostam: paspalhão, cara de pau e dono de uma incomparável expressão corporal. Aqui ele protagoniza muita piada vista e revista, mas eu já havia esquecido de ter dado duas gargalhadas, daquelas de ficar sem respirar, numa comédia. Mesmo não sendo a oitava maravilha, não é tão merdão quanto se pintou por aí. Nota 6,5.

Lá pelas tantas de Clube da Lua, Eduardo Blanco e Ricardo Darín estão confortavelmente sentados num sofá, assistindo à TV e discutindo sobre suas vidas amorosas. Papo vem, papo vai e aí o primeiro se vira e liberta uma sonora flatulência quase na cara do outro. Se o peido foi mesmo de verdade eu não sei, mas o ato ilustra bem essa primeira trinca concluída pelo diretor Juan José Campanella (fecham o pacote O Mesmo Amor, a Mesma Chuva e O Filho da Noiva): um esforço conjunto natural e que flui como poucos, cujo resultado vê-se na tela, integral, do trabalho com o cast à fotografia e a montagem. Gosto de pensar que o clima de confraternização visita o set todo dia. E as lágrimas também. Pensando seriamente em comprar uma camiseta da Argentina. Nota 8,5.

Só a idéia original já é merecedora de alguns prêmios. Totalmente Kubrick exibe o manjado carimbo de "baseado em fatos reais", com atrações extras para os cinéfilos. Trata-se da história real de Alan Conway (John Malkovich, a-do-ran-do a função); apesar de nada saber sobre o trabalho de Stanley Kubrick, ou mesmo ser parecido com ele, esse picaretão resolveu tocar o terror e convenceu uma série de pessoas que era o diretor durante as filmagens londrinas de seu canto de cisne, De Olhos Bem Fechados. O responsável por este Colour me Kubrick, Brian Cook, foi diretor-assistente do cineasta em Barry Lyndon e O Iluminado, entre outros. Deve ser por isso que a produção funciona ao também salpicar, aqui e ali, referências e brincadeiras com a obra do mestre. Cool. Nota 6,5.

No fone: Bob Dylan - "Rollin' and Tumblin'"